quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Chove

"Chovia, a chuva caía em lenta agonia, mesmo ao fim do dia" é o que o pai cantarola em dias de chuva. Aposta como anda de rádio na mão a ouvir a "radio sim", de um lado para o outro da casa. Tem o jornal aberto na mesa da cozinha para as vontades da leitura,  a televisão da sala ligada a fazer companhia sonora e o computador ligado para cuscar o mundo. Quando se aborrece de tudo procura a Pi. Falam do banal, do que falta comprar, do que viu na internet, do que leu no jornal ou do apresentador que parece mais gordo. Falam das galinhas, que lhes chove e é preciso darem um jeito naquilo.
A Pi acordou depois dele, de cara fechada, espera que o pequeno-almoço esteja a andar. Depois vem os preparativos do almoço, o arrumar da casa, a lida dos animais. Atura o pai e deixa-o dormir a ver novelas, enquanto ela faz a sopa de letras da Dica. 
Envelhecer assim,  desempregados de responsabilidades, ficar em casa quentinhos numa espécie de felicidade escondida em cada gota que embate no chão. Ausentes ao som do dilúvio, separados pela parede branca, o telhado vermelho e a porta de alumínio da escuridão do dia de Inverno.
E tudo está bem, quando acaba bem!

"Chove. Que fiz eu da vida?

Chove. Que fiz eu da vida?
Fiz o que ela fez de mim...
De pensada, mal vivida...
Triste de quem é assim!

Numa angústia sem remédio
Tenho febre na alma, e, ao ser,
Tenho saudade, entre o tédio,
Só do que nunca quis ter...

Quem eu pudera ter sido,
Que é dele? Entre ódios pequenos
De mim, 'stou de mim partido.
Se ao menos chovesse menos!"

Fernando Pessoa




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